/* Google Analytics */ /* Google Analytics */

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Em defesa de qual vida? De toda vida!

Será que um crime pelo qual ninguém vai preso deixa de se tornar crime?

Vamos antes começar por um crime que não envolva uma morte direta: corrupção. Todos sabemos a praga que é a corrupção para nosso país. É um crime do qual temos notícias e exemplos fartos diariamente, mas, infelizmente, pouquíssimos estão presos por tal motivo. Situação lamentável, com certeza... Mas será que chegará um ponto em que diremos: "Por que não abolir as leis que tornam a corrupção um crime? Nós não prendemos ninguém mesmo por este motivo..."

Será que o nosso cinismo como nação chegará um dia a tal ponto? Sinceramente, espero que não, seja em relação à corrupção ou a qualquer outro crime. No caso do aborto, que é um crime contra a vida, uma tal hipótese é ainda mais absurda.

Porém, tem gente por aí que acha que o caminho é este mesmo. E o pior: um advogado! Espera-se mais de um conhecedor das leis. O texto na íntegra pode ser visto neste link:

clique aqui

Réus futuros?

No conjunto, todo o texto é cínico ao extremo, mas os dois primeiros parágrafos são os que mais deixam esta qualificação vir à tona. Nestes, o digníssimo advogado praticamente desdenha dos artigos do Código Penal Brasileiro que qualificam o crime de aborto, pois, segundo ele, ou os acusados serão soltos por serem réus primários e terem bons antecedentes ou haveria extrema dificuldade para que fosse provada a culpa de uma mãe que decidisse abortar um filho.

Bem, o senhor advogado pode acreditar no que quiser, mas o que parece mesmo é que ele não pensou 2 segundos em como é possível investigar um tal crime. Será que uma mulher nos dias atuais tomaria Cytotec - um remédio de venda proibida - sem a intenção de abortar? Não seria possível investigar que exames foram feitos para comprovar a gravidez? Testemunhas não poderiam ser ouvidas?

Quanto à questão de que réus primários e com bons antecedentes fatalmente escapariam a uma eventual punição, acho meio ridículo um tal raciocínio. Talvez seja o primeiro caso na história em que alguém defende a tese de que um crime deixe de ser crime pois os futuros réus serão primários e com bons antecedentes!!! Seguindo um tal raciocínio, não falta muito e estaremos utilizando mapas astrais e búzios como provas em tribunais, pais-de-santo e videntes serão juízes, etc. Olha, é um pouco nonsense demais ver um advogado defendendo tal disparate.

Ele parece que simplesmente não entende a questão:

"A pretensão estatal de controlar o corpo da gestante por meio da imposição de uma sanção penal é no mínimo ingênua, para não dizer burra."

Tal abordagem é falha. Apesar do choro das "feministas" e suas simpatizantes, não se trata de controlar o corpo da gestante, trata-se de preservar uma vida. Para tanto, a penalização do crime contra uma vida, qualquer vida, é extremamente válida. É dever do Estado coibir e punir crimes, principalmente os que atentam contra a vida. Voltando ao exemplo da corrupção, talvez o advogado pense que também é ingênuo penalizar tal crime, já que os resultados na repressão são pífios. Duvido muito que ele defenda uma tal posição... O surpreendente é ele chamar de "burra" uma medida que procura punir crime contra a vida. Talvez a adjetivação de burrice caiba bem melhor na esdrúxula tese sobre "réus futuros".

Crime e Castigo

Seguindo seu texto, vemos que aparentemente para o digníssimo a pena pelo crime de aborto tem a única função de dissuadir futuras mães que desejem abortar seus filhos. É evidente que uma pena, qualquer pena, tem esta função. Porém, é para se destacar, principalmente em crimes contra a vida, que a pena tem relevante função punitiva, mas parece que o advogado "esquece" de tal função. Ele prefere colocar seus dons futuristas em marcha novamente:

"Na prática, se a mulher está suficientemente desesperada para sacrificar a vida potencial de um filho, pouco temerá uma hipotética e improvável prisão futura."

Faltou o nosso amigo advogado fazer, como fazem os bons advogados, uma clara e precisa definição do que seria uma "vida potencial". Na discussão do aborto, estamos lidando com o primeiro de todos os direitos: o direito à vida. Se alguém se dispõe a falar de aborto e começa a trazer à discussão termos como "vida potencial", "vida futura" e outras invenções retóricas, o mínimo que deve fazer também é definir tais termos bem claramente.

Duvido que consiga. Desafio quem quer que seja a dizer o que é uma "vida potencial". Desafio também a alguém dizer o exato momento em que esta tal "vida potencial" se torna "vida".

Retirando do texto a liberdade retórica à qual o autor se permitiu, o trecho transcrito acima ficaria assim:

"Na prática, se a mulher está suficientemente desesperada para sacrificar a vida de um filho, pouco temerá uma hipotética e improvável prisão futura."

Assim fica bem mais claro sobre o que estamos discutindo: vida. Vida humana! Partindo disto, se uma mãe sacrifica um filho ela pode estar ciente que cometeu um crime e que há punição para este crime. Se ela teme ou não que esta punição lhe seja aplicada, isto é lá com ela, mas eu escolho não ser cínico e não olhar para o lado, convenientemente achando que ser bonachão é a solução para problemas complexos.

Durante todo o texto o que vemos é o pensamento de alguém que prefere entregar os pontos e contemporizar com o erro. Eis um exemplo:

"(...) a existência da pena não evita o aborto e um processo judicial por este crime está fadado a terminar em pizza (...)"

Consigo imaginar inúmeros políticos que adorariam ter um advogado pensando desta maneira. Um pensamento deste tipo levaria o Brasil a punir cada vez menos e menos crimes. Se trocarmos a palavra "aborto" por "corrupção", podemos ver o absurdo que é defender tal coisa. O que um trecho assim deixa transparecer é que um crime só deve ser um crime quando se consegue punir alguém por ele. É exatamente este o grande absurdo. Um crime é um crime. Ponto. Se as medidas que são tomadas para coibir tal crime não surtem efeito, mudemos os métodos de investigação, tornemos mais eficiente a justiça. O que sai fora deste caminho é puro cinismo disfarçado de realismo. É como dizer que as coisas são assim e nunca podemos mudá-las.

Direito fundamental?

O autor escreve que o "direito de realizar o aborto com adequada assistência médica" é um direito fundamental das mulheres. "Direito" estranho este, pois para ser exercido acarreta a morte de um ser inocente.

E continua:

"É preciso que se entenda que a gestante que decidir interromper a gravidez abortará com ou sem auxílio médico. O Estado não é senhor de seu corpo e jamais poderá vigiá-la 24 horas por dia."

O interessante em trechos assim é que mudando algumas palavras podemos ser levados a aceitar crimes que jamais alguém sequer pensaria em tolerar. Um ladrão que decidir assaltar, irá assaltar, pois o Estado não tem como vigiá-lo todo o tempo. Um assassino que decida matar alguém, não poderá também ser vigiado 24 horas para que não atinja seu objetivo. A forma com que uma sociedade democrática lida com tais crimes é penalizá-los fortemente - tentando dissuadir os que poderiam cometer tais crimes - e efetivamente punir os que chegam a cometer o delito.

Nosso amigo advogado, porém, parece desejar que os crimes sejam qualificados como crimes apenas se os criminosos não são insistentes o suficiente para cometê-los. É mais ou menos assim: se você vai MESMO cometer um crime, não ligando para uma eventual punição, nada mais natural que seu crime deixe de ser crime.

É isto que dá quando se distorce a linguagem para que ela se encaixe em nossas idéias...

Retórica pueril

"(...) estão sujeitas a uma pena não escrita, pois vedada constitucionalmente, mas comum na prática da abortos clandestinos: a morte."

No trecho acima, o autor se refere às mulheres de baixa renda que procuram abortar seus filhos. Diz ele que as mulheres que morrem em virtude de problemas causados por abortos enfrentam uma "pena de morte". Um exagero retórico pueril, pois em nada pode ser comparada a morte de uma mãe que abortou seu filho com a de uma pessoa que seja condenada à pena de morte.

Todo este exagero para indicar que mulheres de renda mais alta podem fazer seus abortos confortavelmente em várias clínicas, enquanto que mulheres pobres são levadas a abortar de forma insegura. Ok. Quer dizer então que em vez de punir também o crime de uma minoria - as mulheres de alta renda - é preferível dar melhores condições para que a maioria - as mulheres de baixa renda - possa cometer também o mesmo crime impunemente? É sério isto?

Um dos grandes problemas do Brasil é exatamente esta hipocrisia de que o pessoal do topo jamais deve pagar por nada. O absurdo é se ver um advogado que sempre se esquiva dos caminhos mais difíceis: ele não se indigna que o pessoal de cima cometa seus crimes livremente, ele prefere que o pessoal de baixo possa também cometer os mesmos crimes.

Um pouco da Constituição

"A criminalização do aborto para a mulher pobre significa a negação do direito à saúde garantido no art. 6º da Constituição da República."

Uma lida no excelente texto do Dr. Celso Galli Coimbra (clique aqui) faria muito bem ao nosso amigo advogado e impediria tais simplificações sobre a questão do aborto tomando como base o texto constitucional. A criminalização do aborto significa que o mesmo é um crime. Ponto. Dizer que isto é uma negação do direito à saúde é dar um enorme salto imaginário, coisa típica de quem só enxerga o que deseja.

Eis o Art. 6o. da Constituição:

"São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."

Tivesse se dado ao trabalho de ler o restante do artigo e não apenas parado na palavra "saúde" para distorcidamente alegar que a criminalização do aborto impede tal direito, o autor teria a oportunidade de se indignar, acertadamente, contra um Estado que não cumpre com sua função de "proteção à maternidade e à infância".

Reducionismos

Uma pérola:

"A discussão sobre a descriminalização do aborto não é uma discussão sobre o direito ou não de a gestante abortar, mas sobre o direito ou não de a gestante ter auxílio médico para abortar."

Aqueles que procuram aprofundar-se o mínimo que seja na complexa questão do aborto, pouco a pouco conscientizam-se do quanto é multifacetado tal problema. Inúmeras abordagens podem ser feitas para discussão deste problema. Ética, Filosofia, Religião, Psicologia, Demografia, Sociologia e outros ramos do conhecimento são chamados a dar contribuições a esta questão.

Pois bem, o trecho acima é de um reducionismo megalômano! Toda a complexidade da questão é reduzida a se há ou não um suposto direito a auxílio médico para abortar. É como se a higiene do local ou o preparo do pessoal da área da saúde fosse o suficiente para resolver uma questão que é eminentemente moral, ética. Alegar tal coisa é um absurdo completo e um desvio do real foco da discussão. Uma abordagem simplista como esta descaradamente evita a fundamental questão de que um aborto trata da eliminação de uma vida humana. Seja em uma clínica na região dos Jardins de São Paulo ou seja dentro de um barraco em uma das favelas do Rio de Janeiro, o ato de abortar tem sempre um resultado certo: um ser humano foi eliminado.

Mais uma vez, confusão

O último parágrafo do texto merece uma atenção especial. A primeira parte do mesmo, é um primor de confusão:

"Para os homens, que sempre puderam escolher entre abandonar suas parceiras grávidas ou reconhecer o filho, e para as mulheres ricas, que sempre tiveram o direito de escolha, a criminalização do aborto pode significar uma opção “pró-vida”."

Afinal de contas, o que tudo isto quer dizer? Quer dizer que as mulheres ricas são pró-vida, mesmo tendo um tal "direito de escolha"? Quer dizer que as mulheres ricas são a contra a descriminalização? Quer dizer que um homem que escolhe ou não abandonar uma mulher grávida é um pró-vida? No afã de setorizar o debate no aborto como se fosse apenas um assunto de mulheres pobres, o advogado esqueceu-se de deixar claro o que estava querendo dizer.

Um homem que abandona uma parceira grávida é um canalha da pior espécie. Caso a sua parceira decida abortar seu filho ele é co-participante neste ato lamentável. Uma mulher rica que aborta seu filho é mais uma mulher que aborta, isto independe de quanto ela tem na conta corrente ou quantas refeições faz por dia.

O problema é que tenham filhos...

A segunda parte do último parágrafo, merece destaque especial, porque é a síntese do pensamento explicitado em todo o texto.

"Já para as mulheres pobres, a descriminalização do aborto não é uma garantia “pró-escolha”, pois o aborto em regra não lhes é uma opção, mas uma necessidade. Para estas milhares de mulheres latino-americanas miseráveis, é a descriminalização do aborto a verdadeira defesa “pró-vida”."

Difícil imaginar cinismo maior do que o que vai neste trecho. O advogado, posando de defensor das "mulheres pobres", exagera na dose ao ponto de dizer que a descriminalização do aborto não é um item da agenda "pró-escolha" - simples eufemismo para "pró-aborto" - quando se trata de tais mulheres. Diz ele que o aborto, em regra, não é opção para tais mulheres, é necessidade.

Ok. Vamos por alguns momentos sair do mundo real e fazer de conta que isto faz mesmo sentido. Neste peculiar caso, as "mulheres pobres" são obrigadas a fazerem abortos porque não têm condições de terem seus filhos. A solução dada pelo advogado não é melhorar as condições de vida de tais mulheres, é possibilitar que elas possam assepticamente abortar seus filhos. Curioso que uma pessoa que se dispõe a defender as "mulheres pobres" em momento algum pense em atacar o problema concreto: a pobreza. Parece que o problema não é que os pobres permaneçam pobres, mas, sim, que os pobres tenham filhos.

A última frase do texto é especialíssima. Chamar de "pró-vida" a descriminalização do aborto fica muito além de qualquer limite retórico, por mais flexível que este o seja.

Tal frase nos leva ao título do texto: "Aborto: em defesa de qual vida?". Aí está uma pergunta para lá de capciosa e até mesmo embaraçosa. Não para mim, mas para o próprio autor... Se ele pergunta "em defesa de qual vida?", é porque inadvertidamente ou mesmo inconscientemente ele próprio já reconhece a vida que já existe no ventre da mãe. Não fosse assim, tal pergunta não poderia ser feita. O problema todo é que ele acha justo que se escolha entre uma ou outra vida. A história do século XX é repleta de gente que se achou no direito de exatamente fazer este tipo de escolha; jamais deu boa coisa...

A descriminalização do aborto jamais será uma causa pró-vida. Talvez possa ser "pró-vida-da-mãe-e-apenas-da-mãe", ou então "pró-sou-eu-que-decido-o-que-é-vida".

Resposta curta e grossa ao título do texto: ambas! Sempre! Uma pergunta assim nos leva a pensar que o advogado quer ser o defensor da vida apenas da mãe. Tudo bem... Talvez ele pudesse então dizer a partir de qual momento a vida do bebê torna-se digna o suficiente para que entre também nos parâmetros do que ele chama de "pró-vida".

Durante todo o texto o autor evitou emitir opinião sobre o que está no ventre da mãe. Ele pode fazer os malabarismos retóricos os mais elaborados, pode apelar ao emocional, pode se mostrar magnânimo, preocupado, etc., mas se ele evita enfrentar este ponto fundamental de frente, é apenas mais um que tenta desviar o foco. Não vale chamar de "vida potencial". Novamente, desafio qualquer um a dizer o que vem a ser isto. Caso insistam em chamar o fruto da concepção, o bebê, de "vida potencial", que seja explicado então qual o exato momento que esta se torna "vida".

É evitado também o problema da falta de condições econômicas que muitas mulheres e famílias enfrentam para criarem seus filhos. A um problema assim, a solução dada é que lhes seja possibilitado abortar seus filhos. Parece que niguém tem a idéia óbvia de lutar por melhores condições para estas pessoas. Na verdade, é até irônico... Um dos grandes "argumentos" do bloco abortista é exatamente colocar em relevo a falta de condições mínimas de que são vítimas muitas mulheres e que praticamente são levadas a abortar, devendo, por isto, o aborto ser discriminalizado. O advogado autor deste texto vai por este caminho. É engraçado como existem pessoas que se indignam que mulheres não possam livremente abortar seus filhos, mas parecem não se incomodar nem um pouco com a melhoria das condições destas pessoas.

O fato é que uma análise deste tipo é manca, caôlha, incompleta. A questão é simplificada e floreada com muitos argumentos politicamente corretos. Lendo-se um tal texto o que vemos é o discurso - lenga-lenga, na verdade - que se tornou corrente entre as mentes "bem-pensantes". Passo...



Nenhum comentário: